quarta-feira, 20 de julho de 2011

A reconstrução da memória

Novas descobertas revelam que é possível modificar as nossas recordações negativas e aumentar a capacidade do cérebro de guardar as lembranças que nos fazem bem

Cilene Pereira e Rachel Costa

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"É preciso fazer com que uma vivência
ruim se torne uma lembrança aceitável"

Rita Jardim, psiquiatra, Rio de Janeiro
"Um cotidiano afetuoso aprimora a memória
do indivíduo e de seus descendentes"

Dean Harley, neurocientista da Tufts University (EUA)

Guardar apenas as lembranças boas, felizes. As ruins, aquelas que nos fazem recordar momentos difíceis e dolorosos, seria melhor que desaparecessem. Certamente você já se pegou imaginando como seria bom se isso fosse possível. Se depender da ciência, esse desejo está cada vez mais próximo de se tornar realidade. Numerosas pesquisas realizadas por centros de estudo espalhados pelo mundo estão comprovando que se pode, sim, alterar ou apagar as memórias negativas, permitindo que a mente só traga à tona as recordações que nos fazem bem. Além de representarem um marco na evolução do conhecimento a respeito da memória humana, as experiências abrem uma fronteira importante para a criação de tratamentos de doenças geralmente marcadas por eventos traumáticos, sofridos, como a ansiedade, o estresse pós-traumático, a síndrome do pânico e a depressão. Nesses casos, a simples lembrança do episódio pode desencadear crises e fazer com que a pessoa sinta novamente as mesmas e terríveis sensações. Evitar que essa recordação apareça – ou fazer com que ela ressurja de modo menos assustador –, seria, portanto, uma maneira de poupar a pessoa de um novo sofrimento.
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O ponto de partida dessa revolução foi a constatação, nos últimos anos, de que a memória é algo vivo, maleável, sujeito a interferências. Muito distinto da ideia predominante entre os estudiosos por décadas de que a memória era como um pacote fechado, guardado no fundo de um armário e impossível de ser aberto. Com o auxílio de equipamentos como a ressonância magnética funcional, capazes de acompanhar o movimento cerebral em tempo real, diversas pesquisas registraram o vai e vem percorrido dentro do cérebro pelas informações do passado e desvendaram a ocorrência de processos fascinantes.

Um deles acaba de ser anunciado. Na última semana, cientistas da Universidade da Califórnia, de Berkeley, nos Estados Unidos, identificaram como são guardadas as lembranças ruins – aquelas pontuadas pelo medo, angústia, estresse. Os pesquisadores descobriram que esse tipo de recordação é tão forte que estimula a criação de uma rede de neurônios própria, em que ficam marcadas com um status especial (leia mais no quadro abaixo). “Em geral, nos lembramos mais das experiências ruins do que das boas”, diz Daniela Kaufer, uma das responsáveis pelo trabalho. “Nosso estudo ajuda a explicar por que isso acontece.” Os cientistas acreditam que a designação de um compartimento específico para esse gênero de recordação foi uma estratégia criada nos tempos em que a humanidade enfrentava animais e intempéries climáticas para sobreviver. Os novos neurônios auxiliavam a identificar e a reagir mais rapidamente às ameaças.

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Portanto, trata-se aí de uma arma de defesa. O problema é quando as más lembranças – hoje resultantes de circunstâncias como a violência, o estresse cotidiano, a pressão no trabalho –, em vez de ajudar, mantêm o indivíduo preso ao passado e à dor. “É preciso fazer com que a vivência afetiva ruim se torne uma lembrança aceitável”, afirma a psiquiatra Rita Jardim, do Rio de Janeiro. As informações levantadas pela ciência irão ajudar a fechar esse ciclo. Descobriu-se que é possível interferir no conteúdo da memória, nas sensações nela impressas ou até mesmo apagá-las principalmente em um momento determinado, batizado de recall ou recuperação. Ele se dá quando a recordação é incentivada a subir à superfície, abrindo o que os pesquisadores chamam de janela de oportunidade.

Estudos importantes, conduzidos na New York University, nos Estados Unidos, deixaram evidente que a manipulação é de fato eficaz quando aplicada logo após a lembrança ser resgatada. A primeira constatação veio com trabalhos em ratos. Os animais foram condicionados a ter medo (ouviam um som e recebiam choques). Um dia depois, foram novamente expostos à experiência, o que reativou o pânico. Depois, foram submetidos a um plano conhecido como treino de extinção: o som foi tocado, mas não houve choque. Verificou-se que o medo foi extinto somente nas cobaias que passaram pela reprogramação até seis horas depois de terem tido suas memórias reativadas – ou seja, após a abertura da janela de oportunidade.

O experimento foi posteriormente repetido em humanos. Novamente, o medo foi extinto apenas nos voluntários que passaram pelo programa de extinção até seis horas após a memória ser recuperada. “O tempo é importante para interferir nas lembranças associadas ao medo”, disse à ISTOÉ Elizabeth Phelps, coordenadora do grupo envolvido nas pesquisas. Aqueles que receberam o treinamento depois das seis horas ou que foram submetidos ao tratamento, mas sem ter a lembrança reativada, permaneceram presos ao medo. Um ano depois, expostos novamente à situação que desencadeou o pânico, aqueles que foram auxiliados dentro do tempo correto manifestaram respostas ao medo significativamente mais brandas dos que os outros.
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GANHO
Silvana Frare fez a operação, perdeu peso e parou de esquecer coisas
Os recursos em estudo para apagar as memórias prejudiciais são variados. Um deles ancora-se em saídas não medicamentosas, como o treinamento usado pelos cientistas da New York University. Boa parte, porém, quer usar remédios ou as próprias substâncias cerebrais. O grupo da Universidade da Califórnia em Berkeley, por exemplo, entende que a formulação de algum instrumento capaz de impedir o nascimento de neurônios associados ao medo pode ser uma boa opção. “Novos tratamentos podem atuar sobre essas células, reduzindo a intensidade da memória ruim”, disse à ISTOÉ Liz Kirby, líder do trabalho.

Nessa linha de trabalho, uma das alternativas mais concretas foi apresentada recentemente por pesquisadores da Universidade de Montreal, no Canadá. Eles demonstraram – em teste com voluntários – que o uso do remédio metirapona ajuda o cérebro a apagar a parte ruim das recordações. A droga havia sido usada para o tratamento da síndrome de Cushing, doença causada pela elevação do nível de cortisol, um dos hormônios do estresse. O que se descobriu é que esse mesmo efeito – de controle do cortisol – pode evitar o registro de lembranças que não queremos guardar. “Reduzir os índices do hormônio logo após o evento traumático pode diminuir seu registro”, explicou à ISTOÉ Marie-France Marin, uma das pesquisadoras envolvidas no estudo.
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Trabalhando em conjunto, cientistas da Universidade da Califórnia e de Muenster, na Alemanha, descobriram outro alvo: uma proteína chamada neuropeptideo S, importante para a formação de lembranças mais fortes. “Se sua ação for impedida, as memórias enfraquecem rapidamente”, disse à ISTOÉ Rainer Reinscheid, professor de farmacologia da universidade americana e envolvido na pesquisa. “Neste estado, elas podem ser substituídas por outras, neutras.” Nos cálculos do pesquisador, dentro de poucos anos será possível testar um remédio que atue sobre esse sistema.

Outra equipe internacional, integrada por americanos e israelenses, investiga como a atuação sobre uma enzima (a PKMzeta) também pode ajudar. “Observamos que inibindo essa substância, mesmo que por poucas horas, se consegue apagar velhas memórias”, explicou à ISTOÉ Todd Sacktor, da SUNY Downstate Medical Center, em Nova York, participante do estudo.

Existem outros trabalhos com o mesmo objetivo sendo feitos neste momento, focados em diferentes substâncias. A intervenção sobre o conteúdo da memória, porém, suscita discussão entre a comunidade científica. Os pontos positivos são evidentes, mas eventuais impactos negativos despertam inquietação. “Só com os resultados mais definitivos teremos uma ideia mais clara das possíveis consequências, como a perda de lembranças úteis ou a interferência no registro de outros eventos”, diz o psiquiatra Antônio Nardi, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Associação Brasileira de Psiquiatria. Temor semelhante é manifestado pelo cientista Ivan Izquierdo, da PUC do Rio Grande do Sul, e considerado um dos mais conceituados na área de memória do Brasil. “Há o risco de intervenção em outras lembranças”, afirma. “Por exemplo, posso ter uma recordação ruim relacionada à minha mãe, mas tentar apagá-la pode afetar outra também associada a ela, mas boa”, ressalva.

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DISCUSSÃO
Izquierdo pondera que a interferência na memória pode ser prejudicial
O debate só serve para enriquecer ainda mais uma área de estudo cada vez mais prolífica. Basta conhecer outra boa safra de novidades, desta vez voltadas para melhorar a aquisição e a manutenção de boa memória. A última deste gênero foi anunciada há três semanas. Pesquisadores da Universidade de Melbourne, na Austrália, apresentaram as conclusões de um trabalho que atestou a eficácia da testosterona para aprimorar a memória de mulheres na pós-menopausa. Durante seis meses, participantes receberam uma dose diária do hormônio, aplicado sobre a pele, em forma de spray, enquanto outras não tiveram qualquer tipo de tratamento. “Aquelas nas quais os níveis de testosterona foram elevados saíram-se melhor nos testes de memória”, contou à ISTOÉ Sonia Davinson, coordenadora da pesquisa. “Estamos agora conduzindo outro experimento, maior, utilizando placebo em um grupo e o hormônio em outro”, adiantou.

Duas outras experiências confirmam que o registro das informações também acontece em momentos nos quais não estamos lá muito preocupados com isso. A primeira provou que uma boa forma de gravar o que acabou de ser ensinado é fazer uma pausa. Estava em uma palestra sobre um assunto difícil? Saia, sente-se, relaxe, respire um pouco, orientam os cientistas. Eles chamam esses minutos de “descanso ativo”. Nesse período, foi observado que o cérebro realiza com propriedade a transferência dos dados que acabaram de ser captados para o hipocampo, uma das estruturas-chave na consolidação da memória. “Mas é bom fazer uma pausa mesmo. Ficar quieto”, aconselha Paul Sanberg, diretor do Centro de Envelhecimento e Recuperação Cerebral da Universidade do Sul da Flórida, nos Estados Unidos. “Usar o tempo para fazer outra tarefa pode prejudicar o trabalho do cérebro.”

O outro experimento comprovou que é possível memorizar quando se está dormindo. O trabalho foi feito na Universidade Northwestern (EUA). Voluntários gravaram a localização correta de 50 imagens dispostas em uma tela de computador. Cada objeto foi mostrado acompanhado de um som associado (gato e o miado do gato). Depois, eles partiram para uma sala calma e escura e dormiram. Suas ondas cerebrais foram monitoradas e, quando os jovens entraram na fase mais profunda do sono, os cientistas começaram a tocar, para cada um, 25 dos sons que haviam ouvido antes. O volume era muito baixo, um pouco superior do que o de um sussurro. Por isso, quando acordaram, os participantes não sabiam que tinham escutado algo. Mesmo assim, lembraram-se melhor das posições dos objetos cujos sons tinham sido executados enquanto dormiam.

No que diz respeito aos benefícios dos alimentos, há boas sugestões. Uma delas é aumentar o consumo de opções ricas em magnésio, como nozes, vegetais folhosos e cereais integrais. Uma pesquisa realizada na Universidade de Pequim, na China, revelou que o mineral aumenta a comunicação entre os neurônios, facilitando o registro e o armazenamento de informações. “Descobrimos que o magnésio é efetivo para aprimorar o aprendizado e a memória”, contou à ISTOÉ Guosong Liu, da instituição chinesa. Apresentam o mesmo efeito alimentos com alta concentração de luteolina. Entre eles, o pimentão, o aipo, o alecrim, a hortelã e a cenoura. “Eles ajudam a evitar a inflamação dos neurônios”, explica a nutricionista Elaine de Pádua, de São Paulo.

Um dos achados joga luz sobre a importância do afeto também quando o assunto é memória. Pesquisadores da Tufts University (EUA) desenvolveram uma experiência inusitada e obtiveram um resultado surpreendente. Eles queriam saber o quanto um ambiente acolhedor, estimulante poderia ser um antídoto contra problemas de memorização. Para isso, criaram ratos com um defeito genético que provoca deficiência na memória. Mas as cobaias que foram colocadas em um local com objetos estimulantes, de atmosfera calma, e onde podiam interagir sem problemas umas com as outras superaram o problema. Meses depois, esses animais tiveram filhotes com a mesma mutação genética. No entanto, a cria não manifestou limitações para se recordar – nem precisou ficar em ambientes reconfortantes. “Demonstramos que um cotidiano rico, afetuoso tem o poder adicional de aprimorar a memória, e não apenas do indivíduo, mas também de seus descendentes”, disse o neurocientista Dean Harley, responsável pelo experimento.
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A conquista da memória

A ciência está desvendando os mecanismos biológicos
que nos permitem lembrar e esquecer – e já prevê aplicar
esses conhecimentos em terapias que melhoram a capacidade
de memorização ou que apagam da mente experiências ruins


Diogo Schelp
Montagem com foto de Istockphoto

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A memória ajuda a definir quem somos. Na verdade, nada é mais essencial para a identidade de uma pessoa do que o conjunto de experiências armazenadas em sua mente. E a facilidade com que ela acessa esse arquivo é vital para que possa interpretar o que está à sua volta e tomar decisões. Cada vez que a memória decai, e conforme a idade isso ocorre em maior ou menor grau, perde-se um pouco da interação com o mundo. Mas a ciência vem avançando no conhecimento dos mecanismos da memória e de como fazer para preservá-la. Pesquisas recentes permitem vislumbrar o dia em que será uma realidade a manipulação da memória humana. Isso já está sendo feito em animais. No ano passado, cientistas americanos e brasileiros mostraram ser possível apagar, em laboratório, certas lembranças adquiridas por cobaias. Melhor: tudo indica que as mesmas técnicas podem ser usadas também para conseguir o efeito inverso: ampliar a capacidade de reter fatos e experiências na mente. E, há duas semanas, pesquisadores da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, nos Estados Unidos, detalharam como as proteínas estão relacionadas ao surgimento de lembranças nos neurônios. Como ocorreu com o DNA no século passado, os códigos fisiológicos que regulam a memória estão sendo decifrados.
"Estamos na transição de uma década voltada à investigação dos mistérios do funcionamento do cérebro para uma década dedicada à exploração de tratamentos para as disfunções cerebrais", escreveu o fisiologista Eric Kandel, prêmio Nobel de Medicina em 2000, em seu livro Em Busca da Memória – O Nascimento de uma Nova Ciência da Mente, publicado recentemente no Brasil pela editora Companhia das Letras (veja entrevista abaixo). A neurociência é um campo tão promissor que, nos Estados Unidos, nada menos que um quinto do financiamento em pesquisas médicas do governo federal vai para as tentativas de compreender os mecanismos do cérebro. Os estudos sobre a memória têm um lugar destacado nesse esforço científico. Afinal de contas, mantê-la em perfeito funcionamento tornou-se uma preocupação central nas sociedades modernas, em que dois fenômenos a desafiam: o primeiro é a exposição a uma carga diária excessiva de informações, que o cérebro precisa processar, selecionar e, se relevantes, reter para uso futuro; o segundo é o aumento da expectativa de vida, que se traduz em uma população mais vulnerável à doença de Alzheimer e a outros distúrbios associados à perda de memória.
Mirian Fichtner
NOVIDADE
Martín Cammarota, do Centro de Memória da PUC-RS, revelou que uma lembrança demora doze horas para se tornar persistente no cérebro de ratos

O cérebro humano pesa, em média, 1,4 quilo e tem 100 bilhões de neurônios, que se comunicam por sinapses – estruturas por meio das quais as células cerebrais se conectam, transmitindo informações na forma de sinais químicos e elétricos. Existem trilhões de sinapses. Cada vez que o córtex cerebral recebe os dados sensoriais de uma nova experiência (um jantar, uma visita a um museu, uma situação de perigo), as sinapses formam certos padrões de comunicação entre os neurônios de diferentes áreas. Algumas redes de células organizam, então, tais informações, comparando-as a outras lembranças já existentes no cérebro, e, conforme a força e o padrão das sinapses, selecionam o que vai ser esquecido ou o que vai permanecer guardado por mais tempo. Quando uma pessoa entra em um restaurante, por exemplo, tem contato com uma infinidade de dados: o rosto do garçom, a cor das paredes, o aroma dos pratos, a conversa na mesa ao lado, o gosto da comida e a textura do guardanapo. A maior parte desses detalhes é apagada da lembrança tão logo se pisa na rua. Mas há aqueles registros que permanecerão por dias, meses e até anos – muitos de maneira inconsciente. O sabor da comida, por exemplo, quando novamente experimentado, pode inundar a cabeça do indivíduo com lembranças da primeira visita àquele restaurante. A maneira como uma memória é recuperada do arquivo mental e as emoções associadas a ela determinam a sua durabilidade. Todo esse processo, aparentemente óbvio quando se parte da simples observação do comportamento humano, agora está sendo desvendado do ponto de vista bioquímico.
A façanha dos pesquisadores da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara foi verificar como a destruição e a produção de proteínas no interior das células nervosas criam novas lembranças e modificam as já existentes. "O estudo confirma a ideia de que não existe memória fixa, imutável", diz Rosalina Fonseca, neurocientista do Instituto Gulbenkian de Ciência, em Portugal, e autora do trabalho que serviu de base para a descoberta dos americanos. O papel da degradação e da síntese de proteínas pode ser explicado com a seguinte analogia: a memória é como uma casa em constante reforma e as proteínas são os tijolos. Muitas vezes, uma parede precisa ser derrubada para que um novo cômodo seja construído. Manter o equilíbrio dessa obra sem fim – da qual participa também mais de uma centena de substâncias químicas, entre neurotransmissores, receptores e hormônios – pode ser a chave para a cura de muitas doenças psiquiátricas e neurológicas. "As principais promessas terapêuticas nessa área vêm dos avanços no conhecimento desses processos químicos e nas descobertas, igualmente recentes, sobre como regiões específicas do cérebro agem nas etapas de formação dos diferentes tipos de memória", diz o neurocientista americano Sam Wang, da Universidade Princeton, coautor do livro Bem-Vindo ao Seu Cérebro, publicado no Brasil pela editora Cultrix. De acordo com a classificação utilizada por Eric Kandel, a memorização, grosso modo, ocorre em dois estágios e divide-se em duas categorias principais. No que se refere aos estágios, a memória pode ser de curto prazo (lembrar-se da balada da noite anterior, por exemplo) ou de longo prazo (recordar-se de uma festa de anos atrás). As categorias são a explícita (também chamada de declarativa) e a implícita. A memória explícita geralmente pode ser descrita em palavras e é evocada de maneira consciente – como a lembrança do primeiro beijo. A memória implícita refere-se a conhecimentos, hábitos e habilidades que são evocados de maneira automática – entre as quais, entender o que está sendo dito nesta reportagem sem a necessidade de recorrer ao dicionário ou de analisar gramaticalmente cada uma de suas frases. A partir dessas classificações básicas, a memória pode ser dividida em vários outros subtipos (veja o quadro).
A habilidade para armazenar diferentes tipos de lembrança varia de pessoa para pessoa, seja por dom natural, seja por treino. Ambas as coisas contribuíram para que o ator Antonio Fagundes tenha excelente memória para palavras, o que lhe permite decorar textos com rapidez. Ele costuma ler as falas de uma cena de novela menos de dez minutos antes da gravação, enquanto a maioria dos seus colegas recebe os diálogos um dia antes. "Acredito que essa facilidade de memorização se explica também pelo fato de eu ser muito concentrado e por meu gosto pela leitura, o que faz com que eu assimile mais velozmente o significado dos textos", diz Fagundes. Em compensação, o ator apaga da lembrança dados inúteis, como o nome de personagens que ele interpretou. O esquecimento tem uma função vital para a mente: como a memorização é um processo desgastante para as células, não há por que gastar energia com informações irrelevantes. Lembrar-se de absolutamente tudo pode ser um tormento. A americana Jill Price, por exemplo, funcionária de uma escola judaica em Los Angeles, recorda-se em detalhes de todos os episódios de sua vida desde a puberdade. Essa capacidade a atrapalha enormemente no cotidiano. Como seu cérebro passa todo o tempo evocando situações do passado, tem dificuldade para se concentrar em uma tarefa do presente. A comprovação é que Jill nunca foi uma boa aluna. "Uma mente entulhada com memórias intrusivas, desimportantes, tem dificuldade de selecionar as informações e tomar decisões", diz a neurocientista Suzana Herculano-Houzel, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os médicos que estudam Jill não têm uma explicação definitiva para essa característica. Sabe-se, no entanto, que alguns pacientes com uma memorização exagerada são dotados de anomalias cerebrais. O americano Kim Peek, morto no mês passado, tinha uma malformação que prejudicava suas habilidades motoras e seu raciocínio. Mas Peek, que inspirou o personagem de Dustin Hoffman no filme Rain Man, era capaz de ler duas páginas de um livro ao mesmo tempo, uma com cada olho, e depois mantinha um registro detalhado de tudo o que lera. Ele conhecia com precisão o conteúdo de 12 000 livros.
João Caldas/Divulgação
NA PONTA DA LÍNGUA
Antonio Fagundes decora as cenas de novela minutos antes da gravação, ao contrário de seus colegas, que precisam de um dia para memorizar suas falas

Um dos experimentos mais interessantes de manipulação da memória foi feito por um grupo de pesquisadores do Centro de Memória da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul. O coordenador do estudo, o neurofisiologista argentino Martín Cammarota, e seus colegas demonstraram ser possível apagar uma memória específica de um rato antes que ela se tornasse duradoura. Para isso, usaram uma droga que inibe a ação do neurotransmissor dopamina no hipocampo, uma estrutura do cérebro envolvida na formação de lembranças de longo prazo. Os pesquisadores também descobriram que uma área vizinha ao hipocampo, quando ativada doze horas depois de uma experiência, desencadeia o processo que levará à retenção daquela memória. Os resultados foram publicados no ano passado na Science, uma das revistas internacionais de maior prestígio no mundo científico. "Apesar de o experimento ter sido feito em ratos, podemos deduzir que também no cérebro humano há uma janela de algumas horas antes que a percepção de um fato persista na memória", diz Cammarota. Nesse intervalo, é possível modificar artificialmente a memória, tanto para inibi-la como para fortalecê-la. Ou seja, no futuro, em tese, uma vítima de estupro poderá tomar uma pílula algumas horas depois da violência que sofreu, a fim de evitar a permanência daquela lembrança traumática. Será preciso ponderar, no entanto, que isso levará ao esquecimento de tudo o que ocorreu na vida da pessoa durante metade de um dia ou mais. Outra aplicação possível é o desenvolvimento de tratamentos contra a dependência química, capazes de apagar o registro mental do prazer associado ao consumo de drogas.
A equipe do neurocientista americano Todd Sacktor, do SUNY Downstate Medical Center, de Nova York, descobriu, por sua vez, como cancelar memórias muito depois de elas terem sido armazenadas no cérebro. Sacktor provou que, ao bloquear a ação de uma proteína específica no cérebro de ratos, é possível apagar uma lembrança formada meses antes. O estudo permite antever o desenvolvimento de drogas que eliminam lembranças antigas indesejáveis. O desafio, mais uma vez, será conseguir fazer essa proeza sem apagar memórias úteis ou agradáveis. As pesquisas de Sacktor e do Centro de Memória, em Porto Alegre, também podem fornecer pistas para a invenção de remédios contra o esquecimento. Já existem medicamentos, como a ritalina, indicados para pacientes com distúrbios de atenção, que, quando usados por pessoas sem essa disfunção, têm efeito semelhante ao de um doping mental, ao incrementar a memorização. O inconveniente é que eles agem sobre os neurotransmissores de maneira indiscriminada e, como consequência, podem alterar o equilíbrio do cérebro em aspectos não vinculados à lembrança.
Um dos caminhos investigados pelos cientistas para deter as degenerações que resultam em perda mnemônica é induzir a produção de novos neurônios – a neurogênese. Até pouco tempo atrás, acreditava-se que as células do cérebro não se regeneravam. Esse mito foi derrubado e hoje se sabe que, em algumas estruturas cerebrais, como o hipocampo, a área mais afetada pela doença de Alzheimer, o nascimento de células nervosas é um fenômeno comum. "Estudos com ratos mostram que, quando a produção de células no hipocampo é inibida, o aprendizado do animal diminui", diz o geneticista brasileiro Alysson Renato Muotri, da Universidade da Califórnia em San Diego, que pesquisa como as células-tronco podem ser manipuladas para se transformar em novos neurônios. O experimento indica que, se os cientistas conseguirem estimular de maneira controlada a neurogênese, poderão aplicar essa técnica tanto para compensar a morte de células causada por uma doença degenerativa como, em tese, para melhorar a capacidade de memorização de uma pessoa saudável. Esse será, certamente, um dia inesquecível.
Ethan Hill/Contour/Getty Images
ENCICLOPÉDIA AMBULANTE
O americano Kim Peek, morto no mês passado, tinha uma anomalia cerebral que lhe permitiu registrar o conteúdo de 12 000 livros

Eric Mcnatt/Contour/Getty Images

"A psicanálise terá
de se adaptar"

O fisiologista americano Eric Kandel, de 80 anos, recebeu o Prêmio Nobel de Medicina em 2000 por seus estudos sobre como a memória é formada e armazenada. Nascido na Áustria, Kandel começou sua carreira interessado em descobrir a localização cerebral do ego, do id e do superego – as três instâncias formadoras da personalidade, segundo a psicanálise. Com o tempo, ele enveredou na pesquisa sobre o que acontece dentro dos neurônios durante a memorização. Kandel concedeu a seguinte entrevista a VEJA, de seu escritório na Universidade Colúmbia, em Nova York:
Como o senhor define a neurociência?
A neurociência trata do último grande mistério no universo científico: a natureza da mente humana. O que nos permite ser criativos, ter fantasias, pensar, tomar decisões e perceber o mundo? Essas habilidades incríveis do cérebro humano são o que os neurocientistas tentam desvendar.
Como as descobertas sobre o funcionamento da memória podem ser comparadas aos avanços da genética, no século passado?
A brilhante descoberta da estrutura do DNA resultou num único padrão que explica todo o processo de duplicação desse ácido que é a essência da vida e de produção de proteínas. Com o cérebro, é diferente. Não há uma única explicação para o funcionamento das memórias. Trata-se de um conjunto de normas, que podem ser comparadas às leis da física.
Se a ciência do cérebro fosse uma estrada de 100 quilômetros, quanto do percurso já teríamos percorrido? Eu diria que estamos entre os quilômetros 10 e 20. Estamos a 100 anos de chegar ao fim da estrada, quando o funcionamento do cérebro será totalmente conhecido.
Há um limite biológico para o volume de memória que o cérebro consegue guardar?
Provavelmente não. Mas há um limite para quanto de memória se pode processar em determinado período. Ou seja, o cérebro só consegue lidar com uma quantidade limitada de informação ao mesmo tempo. Quando esse limite é ultrapassado, as informações não são bem codificadas pelo cérebro. E, sem isso, não há memória.
Qual é a grande questão ainda sem resposta no estudo da memória?
Há muitas delas. Uma, por exemplo, é como evocamos uma determinada memória. Já temos uma boa ideia de como as lembranças se formam e são armazenadas. Mas como essas memórias são recuperadas mais tarde? Para o cérebro acessar determinados tipos de memória, é preciso usar a consciência. Conhecemos muito pouco sobre a natureza da atenção consciente. Outra questão é como as memórias são modificadas ao longo da vida.
A psicanálise está ameaçada pelas descobertas da neurociência?
Não. Psicanalistas e psicoterapeutas podem até se beneficiar com isso, mas terão de se adaptar. Eles precisam se familiarizar com as novidades da neurociência. Já existem, por exemplo, estudiosos analisando imagens cerebrais de pessoas com distúrbios mentais, para detectar possíveis anormalidades e descobrir como elas são revertidas com a psicoterapia. As evidências, até agora, são muito estimulantes. Obsessão-compulsão, depressão, neuroses – com todos esses distúrbios já há estudos mostrando como a psicoterapia ou a psicanálise conseguem reverter, em alguns casos, anomalias cerebrais. Os resultados são bons quando o terapeuta, além de tentar entender o que motiva o paciente a agir de determinada maneira, passa a incentivá-lo a mudar seu comportamento presente. Ou seja, faz um tratamento mais orientado para o aqui e agora. Os estudos de neuroimagem mostram que esse é um método bastante eficiente para certos casos.


Divulgação

"Não existe memória
sem emoção"

O português António Damásio, de 65 anos, é considerado um dos neurocientistas mais respeitados da atualidade. Damásio modificou a compreensão que se tem da biologia das emoções e de como elas se relacionam com a memória. Ele concedeu a seguinte entrevista a VEJA, de sua sala na Universidade do Sul da Califórnia, em Los Angeles, onde leciona.
Qual é o papel das emoções no processo de formação e armazenamento da memória?
A emoção modula constantemente a forma como os dados e os acontecimentos são guardados na memória. Isso é especialmente verdadeiro no que diz respeito à memória para pessoas e para as características relacionadas a elas. Afinal de contas, a sociabilidade faz parte da nossa memória genética, com a qual nascemos e que é resultado de milhões de anos de evolução.
Como as emoções controlam a memorização?
Grande parte de nossas decisões é tomada de maneira mais ou menos automática e inconsciente. Esse processo é guiado pelo valor que se dá às diversas experiências do passado. Por exemplo, se eu conheço uma pessoa que desperta boas emoções em mim, toda vez que eu a encontrar vou reviver uma memória que se divide em dois aspectos: o cognitivo (saber quem é a pessoa) e o emocional (é alguém de quem se gosta). Tais aspectos guiam a forma como conduzimos a relação com os outros. Não há memória ou tomadas de decisão neutras, sem emoção. Hoje já se sabe até em que regiões do cérebro as emoções são processadas.
O que diferencia homens de animais no que se refere à memória?
O que mais distingue a memória humana é a capacidade de ter uma autobiografia. Cada um de nós sabe em grande pormenor e lucidez quando nascemos, quem são os nossos pais ou os nossos amigos, quais são as nossas preferências, o que já fizemos na vida... Enfim, qual é a nossa história. Um chimpanzé ou um cão têm isso de forma limitada. Neles, a memória não possui a mesma riqueza de detalhes e abrangência. Essa diferença é amplificada pela linguagem, que é exclusivamente humana. A linguagem é também a capacidade de codificar as memórias não verbais numa forma verbal. Isso expande enormemente tudo o que o ser humano é capaz de memorizar.
De que maneira a memória influencia a criatividade e a inventividade?
A grande força da criatividade é, evidentemente, a imaginação. E esta nada mais é que a manipulação de imagens, que podem ser visuais, auditivas, táteis ou olfativas. Essa manipulação depende não só das imagens que alguém capta em determinado momento, como daquelas guardadas no armazém de memórias. A imaginação, portanto, recupera informações que foram gravadas nos circuitos nervosos, onde, com a ajuda da emoção, foram organizadas de acordo com certas categorias. Um grande artista ou inventor é alguém que consegue usar a emoção para manipular essas imagens visuais, auditivas, táteis ou olfativas de forma extraordinariamente rica.
É curioso que algo considerado tão transcendente como a arte seja fruto de sinais elétricos e químicos transmitidos por células neurais. Os neurônios, organizados em circuitos, comunicam-se por meio de reações eletroquímicas. O padrão ou o desenho dos circuitos é o que permite a construção de todas as imagens. Isso vale tanto para o que se passa no mundo exterior – visões ou sons, por exemplo – como para imagens interiores, produzidas e transformadas por um estado emocional. São elas que constituem aquilo que chamamos de espírito humano.