sábado, 28 de janeiro de 2012

Reavivar nossa memória - Pa. Vera Cristina Weissheimer *





Há muitas coisas das quais nos esquecemos. Há outras tantas que precisam ser recordadas sempre de novo para que a gente não esqueça da sua importância. Há ainda aquelas que fazemos questão de esquecer.
Nas sociedades antigas era comum encontrar pessoas que tinham a função de guardar a memória do grupo. Eram "homens-memória", contadores de história. Eles eram pessoas importantíssimas, porque acreditava-se que o futuro de uma sociedade dependia da memória que ela mantinha de seu passado. Quem controlava a lembrança influenciava decisivamente o futuro.
Já em tempos remotos se sabia que o lembrar e o esquecer são fundamentais para a vida. Aquilo que é constantemente lembrado acaba se impondo como verdade, e aquilo que se esquece simplesmente desaparece - é como se nunca tivesse existido.
Mas a lembrança não é só uma forma de trazer para o presente algo que aconteceu no passado. A lembrança é sempre uma volta ao passado a partir do que vivemos hoje, a partir do que somos hoje. Lembrar é um exercício de vida. A memória tem o poder de criar sentido para situações da vida que não têm sentido. Nas situações em que a realidade parece sugerir que tudo acabou, a memória tem o poder de produzir sentidos, de indicar caminhos.
É preciso refrescar em nossa memória o significado da Páscoa para que possamos saber por que vamos celebrar, e o que vamos celebrar.
O povo judeu, por exemplo, tinha que manter viva a memória dos filhos, e dos filhos dos filhos, sobre como Deus os libertara da escravidão no Egito. Essa memória é reavivada até hoje no ritual da Páscoa judaica, quando se come a carne de cordeiro (pesach), o pão sem fermento (matzá) e as ervas amargas (maror). No final, tomam-se quatro taças de vinho como lembrança da liberdade e das esperanças renovadas.
Em Êxodo 13.14 está escrito: "Amanhã, quando seu filho lhe perguntar: 'Que significa isso?', você lhe responderá: Com mão forte Javé nos tirou do Egito, da casa da escravidão".
Será que nos preocupamos dessa forma tão pedagógica em ensinar para nossos filhos e os filhos de nossos filhos qual o sentido da Páscoa cristã? Também nela reavivamos nossa memória.
A reflexão sobre a morte de Jesus é um desses momentos densos e intensos. São histórias que nos exigem um exercício profundo de memória, no qual a tragédia da morte se transforma em força, em energia, em vida. A comunidade que consegue manter viva na memória a trajetória de Jesus mantém também vivo o desafio de ser sinal nesse mundo. Somos deste mundo e neste mundo vivemos; é aqui que temos que dar sinais de nossa vida e testemunho cristãos.
O texto do Evangelho de João 19.17-30, que descreve o momento em que Jesus carrega a sua cruz em direção ao Gólgota (palavra hebraica que quer dizer "lugar da caveira"), é um exemplo desse exercício de memória. Parece uma peça de teatro na qual os movimentos e os símbolos falam mais que as palavras. Jesus é portador de uma proposta que não tinha lugar nos centros do poder da época.
Estamos vivendo o tempo da Quaresma, as quatro semanas que antecedem o domingo da Páscoa. É tempo de nos prepararmos para silenciar e refletir sobre como tem andado nossa vida.
Para compreender a ressurreição é preciso ter preparo interior, sensibilidade e simplicidade. Porque a ressurreição não é o reavivamento de um cadáver, mas sim a explosão da certeza de que há um novo caminho. Porém, enquanto estivermos ocupados em fazer orações só para nós mesmos, enquanto preferirmos garantir somente o nosso pão, ao invés de partilhar para que a mesa seja comunitária, não compreenderemos o significado do que aconteceu naquele domingo.
Esses quarenta dias são um tempo para nos tornarmos melhores, um tempo para experimentarmos a partilha, e não a divisão. A diferença está no fato de que na divisão todos recebem a mesma coisa, ainda que alguns tenham necessidade maior do que outros. Na partilha, cada um recebe conforme a sua necessidade, conforme a sua fome.
Nesse período de penitência, vamos pedir perdão por todas as vezes em que nos tornamos agentes de morte; por nossa incapacidade de seguir um caminho conjunto; por nossa incapacidade de trabalharmos juntos; por nosso egoísmo e nossos ciúmes.
Páscoa é a descoberta de um novo caminho, mas essa é uma trilha que só faz sentido para quem se aventura a caminhar por ela.

* Vera Cristina Weissheimer é pastora na Paróquia Centro - SP

terça-feira, 10 de janeiro de 2012